terça-feira, 26 de julho de 2011

Adoecimento do corpo ou da alma?



Nos tempos atuais, nos quais a Medicina é capaz de descrever os mais ínfimos detalhes de nosso organismo, falar em doenças da mente[1] pode lembrar algo de um passado remoto. Mas, de modo contrário ao que se pode pensar, entender o ser Humano como fruto de um entrelaçamento complexo entre corpo e mente, além de outros fatores, é algo também extremamente contemporâneo.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) faz a seguinte definição: “saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental, social e não apenas a ausência de doença”. Definição que pode estar mais completa ainda na Teoria da Complexidade de Edgar Morin, que em 2002 afirmava estar o homem em relação com seu ecossistema, sofrendo suas influências e o influenciando. Disto pode-se entender que é necessário respeitar a singularidade do indivíduo no seu ecossistema complexo, levando em conta simultaneamente seus processos biológicos, psicológicos, sociológicos e culturais.

Como ficaria então a questão do adoecimento, quando é que este entrelaçamento corpo-mente ficaria evidente? Ou, de forma mais simples: quando é que o corpo dá sinais dos sofrimentos da mente?

Esta manifestação de conflitos e angústias psicológicos por meio de sintomas corporais pode ser chamada de somatização. Descrevendo este fenômeno, Lipowski esclarece que a somatização “é uma tendência que o indivíduo tem de vivenciar e comunicar suas angústias de forma somática, isto é, através de sintomas físicos que não têm uma evidência patológica, os quais atribui a doenças orgânicas, levando-o a procurar ajuda médica”. A somatização se manifestaria principalmente em resposta a estresses psicossociais como eventos de vida e situações conflitivas. Algo notável é que o indivíduo geralmente não consegue reconhecer que seu sofrimento tem relação com questões que vão além do corpo, e nega com veemência essa possibilidade. 

Portanto, o corpo não pode ser desconsiderado quanto a seu possível uso como veículo para a expressão do sofrimento psíquico.

A depreciação das relações afetivas, perdas ou estressores psicossociais produzem graus e formas de sofrimento diferentes em cada indivíduo, mas sabe-se que se em um primeiro momento, o impacto disto ocorre invariavelmente a nível psíquico, em num segundo momento, se não são elaboradas no plano mental, podem atingir o campo somático. Tais ‘eclosões psicossomáticas’ ocorrem quando estas vivências podem ser tão desagregadoras que excedam a elaboração psíquica restando o corpo como última válvula de escape.

A psicoterapia é uma importante forma de proporcionar esta elaboração psíquica através da fala, conduzida pela escuta e intervenção de um profissional da área.

As especialidades que trabalham sob um enfoque orgânico tem grande importância, pois há uma enorme gama de patologias que tem seu tratamento conhecido de longa data pela medicina, assim como há a real necessidade do tratamento medicamentoso mesmo para alguns padecimentos da mente; porém, há ocasiões em que algo mais se mostra necessário para o sucesso do tratamento. Em particular com novas formas de adoecimento que cronificam o paciente ou simplesmente não respondem aos tratamentos que focam em partes de um Ser que é muito mais complexo do que o corporal. É neste momento que fica claro que um olhar atento deve ser voltado também para as questões psíquicas, sem negar o corpo, pois ambos parecem estar intimamente entrelaçados.

Para saber mais:

Branco, D. (2010) As Doenças Autoimunes: Lúpus e Psicanálise.
DIAS, H. et al (2007) . Relações visíveis entre pele e psiquismo: um entendimento psicanalítico. Psicol. clin.,  v. 19,  n. 2. Rio de Janeiro.
Freud, S. (1938). Esboço de Psicanálise. Obras Completas, Vol. XXIII, Imago: Rio de Janeiro.
Lipowiski, Z. J. (1984). What does the word ‘psychosomatic’ really mean? A historical and semantic inquiry. Psychosomatic Medicine.
Morin, E. (2002). Ciência com consciência. Bertrand Brasil: Rio de Janeiro.


[1] Psiqués, do grego, é uma referência à personificação da alma, mas usado também como referência à mente.

6 comentários:

  1. Vou colocar aqui um pouco du pensamento do Stanley Keleman (que é também o meu) pra atiçar a discussão!!

    Keleman tava de saco-cheio com essa história de mente domina o corpo ou corpo domina a mente. Em ambos casos temos o dualismo filosófico, pois há a 'matéria' e há o 'espírito'; a parcela imaterial. A ciência contemporãnea não é dualista, é monista - para ela só existe matéria.

    E eu concordo.

    Pois para mim, a mente nada mais é do que o resultado da complexidade orgânica, da rede de captação e computação de informações. Mas a nossa ciência orgânica atual engatinha nos processos de análise e manutenção dessa complexidade, usando de métodos grosseiros e de pouquíssima sutileza para agir nesse terreno.

    Para mim somos matéria. Matéria orgânica, viva e pulsante. E isso não é pouco. Somos matéria que produz linguagem, que simboliza o mundo, que produz imagens cerebrais simbólicas tão valiosas quanto às ambientais para o sujeito que as produz. E isso não pode ser deixado de lado, pois para mim não existe saúde física e saúde mental. Para análise final, específica e didática, podemos dividí-los - como dividiríamos o núcleo de uma célula de sua membrana plasmática. Mas a saúde de um é rigorosamente a saúde do outro, pois um depende do outro e formam o mesmo organismo.

    O problema é que, como volto a dizer, a ciência farmacêutica contemporânea insiste em usar uma chave inglesa para ajustar um parafuso. Devenvolvemos métodos muito mais sutís para isso, como as teorias das Psicologias. E o que nós psicólogos mais reclamamos é que volte-e-meia essa técnica faz o parafuso espanar, fazendo até a nossa ferramenta quase que inutilizada.

    Perdão pelo exemplo mecanicista, mas acredito que depois de situar bem o argumento ele não vai ser interpretado fora do contexto!!!

    Abraço irmão!!

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  2. Entendo a analogia Yuri, e concordo que algumas vezes há um exagero na solução farmacológica. Porém, reconheço que em muitos casos existe a necessidade deste tipo de intervenção, cautelosa e bem administrada por um profissional específico, que neste caso seria o Psiquiatra. Cada um em sua determinada especialidade e, de preferência, podendo comunicar-se em relação ao tratamento.

    A questão relativa a divisão matéria e espírito seria uma outra questão, que não trato no texto e tenho minhas dúvidas quanto a seu pertencimento aos conhecimentos da Psicologia, mas que pode ser discutida sob a luz da Psicanálise enquanto construção subjetiva e não como fenômeno em si.

    Quando me refiro a corpo e mente, a divisão pode ser entendida como um rio que flui em duas partes, com suas águas em sincronia. A separação indica apenas que uma destas partes funciona sobre uma estrutura construída no plano do simbólico, a mente ou aparelho Psíquico.
    A ideia principal é que este "mental", simbólico, mas estruturado em um ser orgânico, não pode ser descartado quanto a sua influência sobre o adoecimento.

    Embora exista uma separação "didática" o funcionamento análogo a uma ressonância fica indicado.

    Alguns Psicanalistas recorrem ao pensamento do filósofo Espinosa como referencial para estas ideias, mas os textos de Freud já indicavam um entrelaçamento corpo/psique. Lacan ressalta ainda mais a expressão do simbólico.

    No texto tentei diminuir o caráter técnico pois não é o objetivo do blog, mas para os estudantes da área que queiram saber mais sobre estas questões, posso sugerir:
    "Projeto de uma Psicologia" (1895) "Os instintos e suas vicissitudes" (1915), "Três ensaios..." e, de Lacan, "os quatro conceitos fundamentais da psicanálise".

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  3. Sem dúvida, muitas vezes é realmente necessaria a intervenção da chave inglesa!! Até porque, mesmo mentecorpo ser uma sistema só, vai ser EXTREMAMENTE complicado curar um Pé Quebrado com terapia!!! Num assunto como saúde mental a linha de influência entre as partes do todo é bem mais tênue. Só usei do exemplo pra dar uma envergada pro lado de cá do balancê da vara!!

    Saquei a forma de abordar a divisão na tua discussão. Não sei quanto a você, mas das minhas conversas com Psicanalistas até agora sentí uma postura onde a realidade mental seria mais significativa do que a realidade material. Vou dar um exemplo:

    Estresse e Vestibular.

    Por definição grosseira, estresse é uma soma de respostas aos estímulos de exigência do ambiente. Pode ser no ambiente material (Tigre) ou ambiente mental (Vestibular).
    Eu, Yuri, considero o estímulo Tigre mais completo (ativa mais respostas do organismo) e ameaçador do que o estímulo Vestibular. Não posso dizer que então é besteira estressar-se com o vestibular, mas posso dizer que o estímulo Vestibular está ligado simbólicamente enquanto o estímulo Tigre está ligado fisicamente. Se eu reprovar eu recebo diversas reprimendas sociais e narcísicas, se eu morrer pro Tigre bem... eu morri pro Tigre.

    Eu dei esse exemplo pois, pelo que sentí até então, há um excesso de valorização do simbólico na discussão psicanalítica (bem, não seria pra menos). Sim, para um dado adolescente o Vestibular pode apresentar-se simbólica e fisicamente como um Tigre, mas ele de fato NÃO O É. Podemos e devemos acompanhar e respeitar o adolescente nessa simbolização em prol da análise, porém eu acredito que não podemos nos perder da realidade orgânica.

    Não sei se me fiz claro, mas eu digo isso por um motivo: vejo que vivemos em um mundo extremamente simbólico e individualista, nos distanciando da realidade orgânica e social. Me preocupa uma postura mental que valorize mais o 'real simbólico' do que o 'real orgânico', assim como uma que faz o inverso.

    Jogo pra você a bola, pra elucidar essa questão se tiver ao teu alcance!! A questão é: até que ponto a psicanálise como um todo e também você como estudioso consideram a valorização dessas 'realidades'??

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  4. Acredito que entendi sua preocupação, mas também acredito que você acertou em um ponto mesmo quando não intencionava: A Psicanálise dá sim grande valor ao simbólico.

    Isto é verdade porque é este o acesso ao inconsciente de onde o analista irá extrair, através da escuta e técnicas como a livre associação, o material para atuar junto ao paciente. Mas não só isto, é através deste material que poderá reconhecer junto com o paciente a origem do sintoma.

    Diferente de outras abordagens, aplacar o sintoma não é o objetivo primeiro em uma análise. Pode ser feito no início, para que o tratamento seja possível, mas não é o objetivo principal. Um dos objetivos é a fonte do sintoma, inconsciente e bem protegido, mas que na própria dinâmica da análise (transferência, repetição...) faz-se acessível.

    Técnicas para aplacar o sintoma podem ser utilizadas, porém, o sintoma se manifestará em um ocasião diferente caso sua fonte não seja conhecida. (Um exemplo exagerado: Não adianta tratar apenas febre (sintoma) causada por uma uma infecção, se isto for feito o paciente irá sentir-se bem, mas também terá um belo problema com a infecção não tratada depois de algum tempo).

    Outro objetivo que poderia citar é levar o paciente a se implicar em suas próprias atitudes, ou seja, entender que é agente ativo em sua história e compreender melhor seus desejos. É desta forma que há uma transformação no indivíduo que se torna mais "dono de si".
    Portanto, o vestibular do seu exemplo vai continuar existindo, mas o trabalho será em relação ao que este representa para aquele vestibulando em questão, não para a maioria, mas para aquele que procurou o psicanalista, em sua história, seus desejos... Em seu "mundo" simbólico.

    Espero ter respondido, mas caso não o tenha, abordarei o tema em um próximo artigo.

    Obrigado pelos questionamentos, e um grande abraço.

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  5. Sim, dar uma passeada denovo por esses conceitos facilita e muito a lida com o assunto!!!

    Pois bem; sendo as dadas dinâmicas inconscientes as fontes do sintoma, realmente o foco se dará no universo simbólico tal qual se faz na estrutura psíquica do vestibulando. E eu concordo plenamente, senão realmente fica difícil de fazer alguma intervenção que preste!!

    A resposta da minha pergunta acredito que seja essa então: A psicanálise sensu latto valoriza e dedica-se exclusivamente à estrutura simbólica do indivíduo, permitindo que a partir da resignificação (e etc) de temas específicos possa então resignificar o tema proposto (no caso, o vestibular) podendo lidar com ele de uma maneira que não seja tão sintomática.

    E isso é dentro da premissa terapêutica. Portanto eu mudo um pouco o teor da minha pergunta: Na premissa social, científica e cultural, ainda há a valorização restrita ao construto simbólico, ou há espaço para um real que não seja somente o mediado através do simbólico individual??

    Essa é uma pergunta sobre a postura filosófica da Psicanálise e como ela lida com a existência!!!

    Abração!!

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  6. Yuri:
    A primeira revista sobre Psicanálise de que tenho notícia chamava-se Imago, Freud era um dos autores e provavelmente editor, mas em 1921 outro destes autores escreveu: "Os processos psíquicos com os quais a Psicanálise lida no indivíduo têm correspondências e analogias no campo da Psicologia Social. Por isso suas descobertas são em larga medida aplicáveis às questões da mitologia, religião, folclore, antropologia, na verdade a qualquer problema que apresente aspectos psicogenéticos".

    Alguns autores privilegiam o enfoque clínico da Psicanálise, é natural, mas existem bons trabalhos da Psicanálise em relação à Cultura. Exemplos bem conhecidos: Calligaris e Mezan.

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